05 setembro 2010

o outro lado de cá

Bateu no vidro da minha janela e eu abri. Eram 10 da noite e eu tinha ido buscar um amigo para ir comigo a uma jam session no Gil Vicente.
- Senhor...
"Mais um...", pensei.
- Diz.
- Senhor, não tenho transporte e agradecia uma boleia até à estátua, mesmo que seja na caixa, fora do carro.
- Não posso, vou para a Baixa.
- Senhor... eu não gosto de estar a pedir, mas o meu filho tem fome...
Mais dois minutos de conversa e fiquei a conhecer parte da história que o Jossias não me queria contar. Dei-lhe o meu telefone e disse-lhe para me ligar na manhã seguinte: convidá-los-ia para almoçar e logo teria ocasião para aferir a veracidade do relato que me era feito. Havia, talvez por não me chamar "patrão" nem "boss" nem outra qualquer expressão do bairro, qualquer coisa que me dizia que este era diferente de todos aqueles que me tinham abordado.

Jossias Jordão Moisés tem 35 anos, "feitos no passado dia 2"; mora com o filho Jaze no bairro da Munhuana, onde aluga um quarto por 500 paus, onde não há electricidade e onde cada balde de 20 litros de água lhe custa um Metical quando quer "tomar banho". Quando se sentam à mesa, Jossias reza uma oração cristã, na qual é fiel e convictamente acompanhado pelo Jaze, embora pela forma como comeram o frango me tenha ficado a parecer que são poucas as vezes em que têm ocasião para agradecer a Deus pela refeição que vão tomar.
Jossias perdeu mulher e filha no segundo parto, na cesariana mal sucedida na cidade de Chimoio. Decidiu vir para a capital, onde, como tantos, presume ter maiores hipóteses de sucesso, terminando o curso que lhe permitirá leccionar a disciplina de Inglês no ensino secundário.
Mas a vida não é tão fácil quanto isso, num sistema tão burocratizado que seguramente lhe irá garantir uns largos meses de espera até que possa ver deferido o requerimento para aceder à escola de formação onde pretende terminar a certificação profissional (o inglês dele é excelente); numa cidade tão grande que ainda não lhe permitiu levar o filho a ver aquelas zonas em que "é tão bonito, papá, porque ainda não me trouxeste a ver o mar"...
Já no carro, de regresso à zona onde mora, Jossias confessou por detrás de uma lágrima menos bem disfarçada que a minha, que não tinha acreditado que o almoço alguma vez iria acontecer, mas que discutiu o assunto com o Jaze e foi o miúdo quem o convenceu a ligar-me: "Papá, branco não mente!"

Jaze completa nove anos dia 12, o próximo domingo. Vai almoçar a Catembe com uma t-shirt, uns calções e uns ténis novos; e vai tomar banho naquele mar que tanto o fascinou - mas só se o medicamento que o pai finalmente conseguiu comprar lhe tiver já resolvido aquela tosse cavernosa que lhe retira parte do brilho daqueles olhos curiosos, que esconde atrás das mãos quando falo com ele, dizendo "tenho vergonha"...

3 comentários:

João Cid disse...

Sem mais palavras...
Apenas... 1 forte abraço!
João

Anónimo disse...

Lindo!!!a mim também me deixa lágrimas nos olhos...Bonito gesto!!!Fazer alguém, assim, feliz é tão fácil... ;)
Bjs
Filipa

Pedro Lo disse...

Excelente conto. E gostei do texto, também. Adoro gente séria, genuína, boa, simples, e não necessariamente humilde. Espero que esta gente tenha alguma sorte.

Abraço,
Pedro Ló