23 setembro 2010

nem tudo o que luz

Para ir até à Ponta do Ouro existem pelo menos duas hipóteses: uma é apanhar a estrada até Boane e virar para nascente, em direcção ao mar; outra, a que escolhemos, é apanhar o ferry e encurtar caminho, indo directamente para Sul.
O ferry não é propriamente um ferry. De facto, trata-se de um cargueiro de pequeno porte a cujo convés as viaturas acedem lateralmente a partir do cais; uma vez no convés, há que optimizar o espaço, pelo que são necessárias repetidas manobras para encaixar 10 viaturas numa zona onde cabem... exactamente 10 viaturas - e os passageiros que se amanhem entre os carros, mais apertados que menos.
A minha viagem foi efectuada entre o tejadilho do meu carro e a caixa de carga da camioneta que estava ao meu lado: era sair pela janela do carro, subir à caixa de carga da tal camioneta, carregada de tijolos, e então aceder ao tejadilho do meu. Dali tinha uma visão mais desafogada e seria mais simples saltar para a água caso as coisas dessem para o torto - ou para o fundo, no caso presente, nada de assim tão improvável dada a quantidade de viaturas e a tipologia da carga transportada.

  
Passados os cerca de 20 minutos que a viagem demora até Catembe, podíamos agora ter uma nova visão de Maputo, o skyline, qual Manhattan do Índico. Na verdade, a cidade é de uma enorme beleza, mais facilmente visível à distância, já que evitamos ver a falta de conservação dos prédios, o lixo nas ruas e o forte e quase omnipresente cheiro a urina - para além da evidente escassez de instalações sanitárias, este pessoal tem pouca noção de decoro e de conveniência, fazem onde e quando lhes apetece e virados exactamente para o lado onde estavam virados no instante em que lhes apeteceu.
Ao fim de poucos quilómetros, a paisagem começa a fazer-nos questionar a opção de viajar até tão longe para ir até à praia. Ainda na parte sul da baía, a vista deslumbra e apetece parar o carro e não andar nem mais um metro, ficar ali a tarde inteira.
Mas, obstinadamente, prosseguimos até ao nosso destino mais remoto, um "algarve" cá da zona, reputado como local paradisíaco e de visita obrigatória. E lá nos fizemos à estrada...


...e ao pó...

... e ainda a mais pó...


... até que, sem qualquer aviso ou sinalização prévia, a estrada acabe num gigantesco buraco.


Algumas peças teimam em desapertar-se e em querer ficar pelo caminho, o que, à falta de ferramenta adequada, obriga a trabalho manual bem oleado... e bem oleoso...


Resolvida (aparentemente) a questão, terra pela frente, longas linhas rectas de estradão de terra batida.


E mais estradão, e mais terra...


... e mais terra, e as peças a desapertarem-se de novo...


...e ainda mais terra...


... e outra vez terra...
Não, espera! Ali é areia! E o estupidamente moderno e eléctrico comando da tracção integral não funciona, apenas o bloqueio de diferencial: e agora, como fazer?
Mais uma vez debaixo do carro, lá se conseguem engrenar manualmente as rodas da frente, embora apenas na opção de baixas; ora isto safa-nos da areia, mas limita-nos a deslocação a um máximo de 40 km/h.


Resolvida a questão da tracção, temos agora o problema da orientação: se as placas não nos fizeram falta até agora, que era sempre a direito e a auto-estrada de terra não tinha variantes, as múltiplas opções de caminhos e carreiros, todos de igual dimensão e aparente frequência de uso fazem agora duvidar qual o caminho a seguir. E são já 16h30, falta uma hora para anoitecer... não vai correr bem...

A primeira placa depois de quatro horas diz "Ponta do Ouro", mas continuamos sem ver o mar. Embora ainda haja luz, o Sol já desapareceu no horizonte: parece que chegámos mesmo a tempo...


... e que a viagem compensou!


Na manhã seguinte, as primeiras impressões da véspera confirmaram-se. A praia é fantástica, quase deserta - sim, o Verão e a época alta estão ainda a pelo menos um mês de distância. Pena não exista manutenção nem limpeza: das ruas, das casas, da água corrente, da rede eléctrica - nem das estradas de acesso, que até há 35 anos eram alcatroadas e permitiam que os cerca de 100km que separam este local da capital fossem percorridos em pouco mais de uma hora.
De referir que a temperatura da água era excelente, embora o banho fosse desaconselhado: um "cardume" de alforrecas de 10 cm de diâmetro e de cauda azul fez questão de aparecer na praia exactamente naquele dia.


No regresso, tive que ir até ao estrangeiro - eram 15km e eu tinha que cumprir a minha rotina do carimbo mensal. A ligação internacional é esta...


21 setembro 2010

SHT


- Meu brada, segura p'ra eu subir.


- Ya, sabes, eu assim sinto-me maningue seguro.
Acho que agora vamos sempre fazer dessa maneira...


... mesmo que seja no segundo andar...



reggae nights

São no Gil Vicente

05 setembro 2010

o outro lado de cá

Bateu no vidro da minha janela e eu abri. Eram 10 da noite e eu tinha ido buscar um amigo para ir comigo a uma jam session no Gil Vicente.
- Senhor...
"Mais um...", pensei.
- Diz.
- Senhor, não tenho transporte e agradecia uma boleia até à estátua, mesmo que seja na caixa, fora do carro.
- Não posso, vou para a Baixa.
- Senhor... eu não gosto de estar a pedir, mas o meu filho tem fome...
Mais dois minutos de conversa e fiquei a conhecer parte da história que o Jossias não me queria contar. Dei-lhe o meu telefone e disse-lhe para me ligar na manhã seguinte: convidá-los-ia para almoçar e logo teria ocasião para aferir a veracidade do relato que me era feito. Havia, talvez por não me chamar "patrão" nem "boss" nem outra qualquer expressão do bairro, qualquer coisa que me dizia que este era diferente de todos aqueles que me tinham abordado.

Jossias Jordão Moisés tem 35 anos, "feitos no passado dia 2"; mora com o filho Jaze no bairro da Munhuana, onde aluga um quarto por 500 paus, onde não há electricidade e onde cada balde de 20 litros de água lhe custa um Metical quando quer "tomar banho". Quando se sentam à mesa, Jossias reza uma oração cristã, na qual é fiel e convictamente acompanhado pelo Jaze, embora pela forma como comeram o frango me tenha ficado a parecer que são poucas as vezes em que têm ocasião para agradecer a Deus pela refeição que vão tomar.
Jossias perdeu mulher e filha no segundo parto, na cesariana mal sucedida na cidade de Chimoio. Decidiu vir para a capital, onde, como tantos, presume ter maiores hipóteses de sucesso, terminando o curso que lhe permitirá leccionar a disciplina de Inglês no ensino secundário.
Mas a vida não é tão fácil quanto isso, num sistema tão burocratizado que seguramente lhe irá garantir uns largos meses de espera até que possa ver deferido o requerimento para aceder à escola de formação onde pretende terminar a certificação profissional (o inglês dele é excelente); numa cidade tão grande que ainda não lhe permitiu levar o filho a ver aquelas zonas em que "é tão bonito, papá, porque ainda não me trouxeste a ver o mar"...
Já no carro, de regresso à zona onde mora, Jossias confessou por detrás de uma lágrima menos bem disfarçada que a minha, que não tinha acreditado que o almoço alguma vez iria acontecer, mas que discutiu o assunto com o Jaze e foi o miúdo quem o convenceu a ligar-me: "Papá, branco não mente!"

Jaze completa nove anos dia 12, o próximo domingo. Vai almoçar a Catembe com uma t-shirt, uns calções e uns ténis novos; e vai tomar banho naquele mar que tanto o fascinou - mas só se o medicamento que o pai finalmente conseguiu comprar lhe tiver já resolvido aquela tosse cavernosa que lhe retira parte do brilho daqueles olhos curiosos, que esconde atrás das mãos quando falo com ele, dizendo "tenho vergonha"...

03 setembro 2010

o dia seguinte




Imagens gentilmente cedidas pelo telemóvel da Bi.

01 setembro 2010

idade

Dizia-me um velho velho conhecido que encontrei casualmente aqui em Maputo, do alto dos seus 80 anos e detrás daquela barba branca, mais branca que a minha, que aproveitasse bem, que "esta terra dá-nos anos de vida".
Hoje, apesar de hoje e apesar das saudades de tudo o que não pude trazer comigo, hoje ele tem toda a razão.
Polícia abre corredor para a tripulação da TAP chegar ao aeroporto
- 1-Sep-2010 - 11:06
A situação no aeroporto de Maputo, Moçambique, tende a normalizar porque foi aberto um corredor para permitir que a tripulação da TAP que está retida no hotel aceda ao local, disse fonte do Governo.
“Foi aberto um corredor para que a tripulação da TAP que chegou hoje possa sair e a que a vai substituir possa chegar ao aeroporto”, disse fonte do gabinete do secretário do Estado das Comunidades.
Um avião da TAP está retido em Maputo porque a tripulação não conseguia chegar ao aeroporto devido aos protestos que decorrem hoje nas ruas moçambicanas.
A mesma fonte disse ainda que a situação no aeroporto “tende a normalizar” e que todos os portugueses que estão no local “estão bem”.
“Não há motivos nenhuns para alarme em relação aos portugueses”, reiterou.
O protesto de hoje, que começou de madrugada com a “greve” dos transportes públicos (chapas), deve-se ao aumento do custo de vida.
Hoje aumentam os preços da água e da luz.
Há relatos de estradas cortadas e lojas vandalizadas, a polícia está a disparar contra os manifestantes e há um número não determinado de feridos.
No centro da cidade de Maputo não há praticamente trânsito e as lojas foram fechando ao longo da manhã, com as pessoas a tentar agora regressar a casa.

Ruas desertas e bloqueadas em Maputo e protestos feitos à lei da pedra
- 1-Sep-2010 - 11:10
As principais avenidas de Maputo estão desertas de carros e pessoas, que se juntam nas entradas da capital, onde não se pode passar e crianças circulam com pedras nas mãos: “tia, se queres passar, leva uma”, gritam.
Na zona do Alto Maé, na Avenida 24 de Julho, uma das principais artérias da cidade, há também relatos de um carro que foi incendiado e avisos de que se pode tornar “uma questão rácica”.
“Se passas, vão pensar: porque está uma branca a ir trabalhar?”, contou um dos manifestantes que, acrescentou, “o pior é que estão a usar crianças”.
As escolas estão fechadas e grupos de jovens circulam na avenida, alguns com pedras na mão, junto aos caixotes do lixo derrubados. “Tia, se queres passar, leva uma”, grita um deles com um paralelo na mão.
De acordo com a imprensa local, duas crianças terão sido mortas na zona do aeroporto, onde as manifestações começaram bem cedo, em protesto pelos aumentos dos preços dos bens essenciais.
Na Baixa da cidade, as Avenidas 25 de Setembro, Guerra Popular, Karl Marx, por exemplo, estão calmas. Apenas alguns carros circulam, a maior parte deles da Polícia, e as pessoas juntam-se à porta das lojas fechadas com grades.